Todos perdem quando a religiosidade dos pacientes é ignorada pelos médicos
Apenas 1% dos brasileiros não acredita em Deus.
Foi o que revelou o Datafolha em 2007, numa ampla pesquisa usada até hoje como
indicador da fé, uma das características mais marcantes da nossa
população.
O que acontece com a religiosidade dos outros
99% quando precisam de um hospital? É ignorada placidamente.
Com raríssimas exceções, os profissionais de
saúde não levam em consideração o papel das crenças na vida dos pacientes.
Deveriam. É no hospital, mais que em qualquer outro lugar, que o doente entra em
contato com sua fragilidade e busca apoio na fé.
A religiosidade e a espiritualidade não são
dados irrelevantes para a recuperação e para o bem-estar do paciente – mesmo
quando a recuperação não é possível.
Tão importante quanto saber se o sujeito tem
diabetes, hipertensão ou o vírus HIV é reservar um momento para levantar
informações sobre sua espiritualidade. Com o objetivo de entender a participação
dessas crenças na saúde e na doença. Sem julgar ou tentar modificar a existência
ou a falta delas.
Isso raramente é feito no Brasil, mas há um
movimento entre os profissionais de saúde (crescente, mas ainda pouco conhecido)
que defende a inclusão no prontuário médico da história espiritual do
paciente.
Dessa forma, ela seria levada a sério e ficaria
documentada – de uma forma acessível a qualquer profissional do hospital que
tivesse contato com o doente.
A maioria dos pacientes deseja receber mais
apoio espiritual durante o tratamento. É o que alguns estudos começam a
demonstrar. Durante seu mestrado, a enfermeira oncológica Carolina da Cunha
Fernandes decidiu investigar a visão dos pacientes do Hospital A. C. Camargo, em
São Paulo.
Foram entrevistados 75 homens entre 48 e 79
anos com diagnóstico de câncer de próstata. E 75 mulheres entre 31 e 83 anos em
tratamento de câncer de mama. Outras 150 pessoas compuseram o grupo controle.
Eram cidadãos que participavam de atividades do hospital mas não tinham a
doença.
Os resultados dão a dimensão do problema. A
maioria (97% dos homens e 86% das mulheres) não haviam conversado sobre suas
crenças religiosas ou espirituais com algum profissional da saúde. A maioria
gostaria que esse momento tivesse existido (57% dos homens e 53% das
mulheres).
Ainda mais interessante: 61% das mulheres e 60%
dos homens afirmaram que poderiam ter se sentido melhor ou mais dispostos para o
tratamento se tivessem recebido cuidado religioso ou espiritual dos
profissionais de saúde.
Esses dados despertam várias reflexões:
médicos, enfermeiros e demais trabalhadores dos hospitais deveriam assumir mais
essa responsabilidade? Eles vivem assoberbados. São muitos os pacientes a
atender, muitos os protocolos e os processos a cumprir, muita papelada a
preencher, quase nenhum tempo para olhar nos olhos e conversar.
Outra questão é saber de que forma os médicos
poderiam dar conta dessa demanda por cuidado religioso. Médico é médico. Não é
líder religioso. A solução parece estar no bom senso. Em primeiro lugar é
preciso diferenciar religiosidade e espiritualidade.
A religiosidade tem relação com um conjunto de
crenças bem estabelecidas e compartilhada com um grupo. A espiritualidade é
particular e subjetiva. É, por exemplo, a busca por um sentido na vida.
A espiritualidade vai além da religião. Discuti
esse aspecto em outra coluna. No fim da vida, um ateu também tem suas
necessidades espirituais. Pode questionar suas ações, seu legado para a
humanidade, seu papel nesse mundo. O médico que é capaz de percebê-las e
respeitá-las é mais que um profissional. É gente de primeira grandeza.
Neste aspecto da vida, os profissionais da
saúde podem fazer muito pelo paciente. Podem, por exemplo, liberar a entrada de
um grupo de orações ou avisar um líder religioso que o paciente gostaria de
vê-lo. “É preciso agir com flexibilidade”, diz Carolina.
Há ações muito singelas, mas nem por isso menos
importantes. “Certa vez uma paciente perguntou se podia colocar água benta nas
mãos da enfermeira que ia instalar a bolsa da quimioterapia”, diz
Carolina.
Outra paciente faz questão de colar um santinho
na bolsa de quimioterapia antes da infusão. “Respeitar as crenças e os hábitos
pode fazer uma diferença muito grande. Não temos o direito de tirar a esperança
de ninguém.”
As razões humanitárias já seriam suficientes
para justificar a adoção de ações simples como essas. Mas há outras, de ordem
fisiológica. Vários estudos tem demonstrado como algumas práticas religiosas
atuam no cérebro e repercutem sobre os hormônios, sobre o sistema cardiovascular
e sobre o sistema imune (o que é extremamente importante para quem enfrenta um
câncer).
Pessoas que oram ou praticam meditação parecem
lidar melhor com o stress. Os níveis de cortisol (o hormônio do stress)
diminuem. Assim como a pressão arterial e a frequência cardíaca.
Outras pesquisas demonstram que participar de
um grupo religioso – seja ele católico, budista, judeu, evangélico, umbandista
ou qualquer outro – traz benefícios por aumentar o suporte social ao
indivíduo.
O apoio social é extremamente valioso não
apenas para os doentes. É um ingrediente fundamental para a sobrevivência e a
longevidade.
Com pequenos gestos, médicos, enfermeiros e
toda a constelação de profissionais que fazem um hospital funcionar podem
garantir dias melhores aos doentes que têm necessidades religiosas. Devem
trabalhar para isso, de coração aberto, mas sem desprezar ou incomodar os que
não têm fé.
Eles são apenas 1%, mas existem. Merecem tanto
respeito quanto os que creem.
E você? Acha que os médicos deveriam dar mais
atenção à espiritualidade dos pacientes? Conte pra gente. Queremos ouvir sua
opinião.
CRISTIANE SEGATTO Repórter especial, faz parte
da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre
medicina há 17 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de
jornalismo. Entre em contato:
Email: cristianes@edglobo.com.br
Rádio:
Ouça os comentários dela no Boletim Saúde e bem-estar da CBN e mande mensagens. Todas as
segundas-feiras, às 15h30, ao vivo
Nenhum comentário:
Postar um comentário